sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Abade de Gondesende

Há muitos anos atrás, no tempo dos meus bisavós, veio parar a Gondesende o Abade Augusto, o homem mais avarento deste mundo e do outro. 
O primeiro baptizado que celebrou foi o do meu avô César que, claro está, ficou logo com o nome de Augusto. Este, por sua vez, teve cinco filhos, dois Augustos e três Augustas, sendo também Augustos todos os seus afilhados...que por sinal até foram muitos.
O Abade teve uma criada, a Rosária, que já com alguma idade lá ía aturando o mau feitio da peça.
Rico e com muitos bens, só emprestava dinheiro aos avantajados com a certeza que lho devolviam (com juros, claro!..). Quando algum pobre, num momento de aflição, lhe batia à porta para pedir um empréstimo logo dizia: - Não posso. Cabras não tens, cabritos não vendes e depois quando é que mo tornas?!
Na altura da Páscoa e quando da visita Pascal, era uso oferecer ovos, doces, coelhos e galinhas, que ele, "unhas de fome", guardava só para si. Por vezes, quando os miúdos brincavam no adro da igreja a criada Rosária distribuia, às escondidas do Abade, alguns doces que nessa altura já estavam "duros como cornos" sendo difícil enterrar-lhe o dente. A velha criada era boa gente e acabou por morrer ainda ao seu serviço. Depois veio a Dona Glória, mulher roliça, matreira e com um olhar atrevido que em vez de aturar o velho Augusto, procurava pela aldeia os rapazes mais moços... Ele estava sempre a chamar : -Ó Senhora Glória, ó Senhora Glória! E como ela nem sempre respondia, terminava:- Qual Senhora Glória, qual Senhora merda!
O Abade passava todos os santos dias a contar os tostões que tinha...
Um dia recebe uma carta com uma ameaça de morte que dizia que se  não fosse ao alto do Ranhadouro meter uma certa quantia de dinheiro no buraco de um castanheiro que por lá havia alguém viria tirar-lhe o sebo. O velho padre andava triste e amargurado e um dia  lá foi desabafar com o seu amigo Albino, homem decidido que logo se "prontificou" a ajudar o abade. Foram contar às autoridades que nesse dia se esconderam no monte à volta do dito castanheiro para fazer uma cilada aos autores da carta.   Depois o tio Albino vestiu o capote do padre, pôs o seu chapéu preto na cabeça e lá foi mancando e tossindo, com a bengala numa mão e a pasta do dinheiro na outra. Mas o que meteu no buraco do castanheiro foi um saco cheio de folhas de jornal...
Nesse tempo era uso que  quando alguém passava pelo reverendo Abade lhe pedisse a benção e beijasse a mão. E como o tio Albino representou tão bem o seu papel todos os que por ele passaram lhe  pediram a benção pensando ser o Abade Augusto.
O farsante, sem levantar a cabeça, sorria e dizia: - Deus vos abençõe!  
Depois de ter colocado o saco no castinheiro tal como combinado os malandros, que se encontravam por perto, quando foram buscar o falso dinheiro foram apanhados pela polícia.
Mais uma vez o Abade conseguiu proteger o seu bem mais precioso e como forreta que era nem agradeceu a quem o auxiliou.
Apesar da grande riqueza, o velho padre acaba por morrer só e de uma forma terrível, queimado no lume...o único legado que deixou a Gondesende foi o seu nome...pois, ainda hoje, existem muitos Augustos e Augustas na aldeia.
 

domingo, 10 de janeiro de 2010

O Fumeiro


Finalmente, o fumeiro está feito. As mulheres da casa passaram os últimos dias na cozinha de volta dos potes, das caldeiras, das carnes, das adobas e das tripas...Terminada a árdua tarefa dos chouriços é tempo de fazer o "alboroque". Agora já estão nas varas ao fumo e o pote ao lume com o guizado dos ossinhos da adoba aos quais se junta os miolos do porco. Um petisco típico da nossa terra; noutras aldeias estes ossinhos servem para fazer o botelo para mais tarde comer com as cascas.
Em Gondesende temos uma grande variedade de chouriços de diferentes qualidades e sabores: as chouriças de sangue que podem ainda ser doces ou feitas com mel, os azedos ou chouriços de pão (o maior é o palaio), saborosos cozidos e tostados no forno a acompanhar uns bons grelos (com esta massa também se podem fazer os doces com mel, nozes e canela, e os "larotos"), as chouriças de carne e as de "boche" (feitas com a carne da cabeça e os boches do porco que se comem no cozido), os salpicões que podem também ser feitos juntando a língua com o lombo (estes são bons cozidos!) e por fim, as tão afamadas alheiras.
O fumeiro já esteve ontem nas varas a decorrer na adega e hoje foi finalmente colocado na lareira. Durante os próximos dias irá ainda libertar alguns pingos enquanto o fumo, o calor e frio  não os secarem.
Queira Deus que nos próximos dias não haja nevoeiro ou muita húmidade pois isso pode estragar todo o trabalho. Um tempo seco e geadeiro é o que se precisa. Depois do fumeiro seco guarda-se na adega para comer durante o resto do ano. Actualmente já se pode também recorrer à arca para ajudar na conservação.

Nesta altura do ano o fumeiro concentra a atenção de todos, não só pelo trabalho que acarreta mas também pela riqueza que representa, por isso, na altura dos Reis (reizinho também é nome de chouriça pequena), se canta:
Quem lhe vem cantar os Reis,
Pela buraca da porta,
Dê-nos uma chouricinha
Que já tem a porca morta.

ou, quando não abrem a porta:
 Aqui caga o Rei
Aqui caga o Papa
Se não nos dão os Reis,
Fazemos aqui a caca...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O Baú das memórias


Este ano o frio tem apertado, já nevou duas vezes e, não fosse a chuva que não para de cair, certamente tudo estaria completamente gelado. Como não se pode sair de casa procura-se passar o tempo junto da lareira  lembrando histórias de outros tempos em que não havia televisão nem rádio e as veladas decorriam entre conversas e umas suecadas. Nesse tempo era sempre bemvindo um bom conversador com novas peripécias e traganices para animar as brincadeiras.
Procurando num álbum de fotografias cá de casa encontrei uma tirada há já muito tempo no final de uma vindima. Nesta fotografia, igual a muitas outras que todos nós temos em casa, podemos lembrar alguns dos nossos vizinhos já desaparecidos mas de quem guardamos muitas e gratas memórias. O tio David, o tio Cerqueira, o tio Silvério e o Francisquinho já partiram mas são ainda da minha lembrança.  Hoje apenas as duas princesas estão connosco, ainda que um pouco mais velhas. O tio Augusto, meu avó materno,  grande animador das camaradas e amigo das traganices, já não conheci embora saiba de muitas das suas brincadeiras por mas terem contado.
O Francisquinho (ou Francisco quinho como ele dizia), ainda que sendo natural de Conlelas, está ainda muito presente nas memórias dos mais velhos. Talentoso tocador de harmónica (lareijo ou realejo como ele lhe chamava) muitas vezes animou veladas e bailes com as suas rapsódias. A sua maneira despreocupada de viver e a forma como negociava a sua jorna em cigarros e um realejo novo,  despedindo-se sempre que chegava a Santa Rita, estão ainda bem vivas na memória dos de Gondesende. Hoje já não é fácil encontrar quem viva desta forma e mesmo assim conquiste a amizade de todos.
Actualmente a televisão tem ocupado o espaço de convivio e reduzido a convivência entre todos. Deste modo se tem perdido muito do vocabulário que ainda se utilizava na nossa infância e as contas e landonas que não ficaram registadas. Contudo, os computadores e a internet permitem que possamos partilhar as fotos antigas e aquilo que cada um de nós ainda guarda na memória. Tudo isto faz parte da nossa cultura e nos identifica como povo, será que estamos dispostos a partilhá-las?

sábado, 2 de janeiro de 2010

O dia da Matança ou "Mata-porco"


Era  normalmente entre o Natal e o Ano Novo que decorriam as matanças, aproveitando o frio e as geadas para decorrer e enrigecer as carnes. Os porcos eram cevados em casa com castanhas, folhas de negrilho, beterrabos, bóbdas (abóboras) grão e ferrã e, muitas vezes, tinham mais de 200kg.
Nesses tempos a carne de porco era a base de toda a alimentação, quer nas carnes frescas, quer nas carnes salgadas e fumadas, quer nos enchidos, tudo se aproveitava e era depois utilizado ao longo do ano. A gastronomia transmontana conserva ainda muitos dos petiscos, confeccionados com carne de porco, com que as nossas mães e avós nos brindavam. Costuma dizer-se que do porco só não se aproveitam as unhas e os ossos, até o sangue é utilizado para fazer os chouriços de verde ou os chavianos (feitos com sangue e carne de adoba).
Além da carne, o porco dava ainda outros produtos de grande utilidade como: o pingo (banha), o unto, o toucinho e os rijões (torresmos) que se conservavam ao longo do ano e permitiam temperar o caldo, untar as torradas de centeio e rijar (fritar) as batatas. Os rijões também podiam ser comidos com pão ao mata-bicho.

As matanças eram como rituais para os quais se convidavam os familiares e amigos mais chegados. Nesse ritual, em que os porcos eram sacrificados, o matador devia sangrar bem o animal sem lhe prolongar o sofrimento. Por isso, nem todos gostavam dessa tarefa que ficava normalmente a cargo dos mais velhos e experientes. Aos mais novos era reservada a tarefa de apanhar o bicho, segurá-lo e ajudar depois a prepará-lo, isto é, chamuscar-lhe o  pelo, lavá-lo e rapá-lo. Por vezes o dono do porco dizia "... rapem bem o pelo que a patroa já vê mal..."
O mais novo era incumbido de cortar o rabo e assá-lo com muita malagueta para depois todos beberem mais um copo de vinho. Aos garotos estavam também reservadas algumas partidas que os mais velhos estavam sempre prontos a pregar. Meter as unhas do porco no bolso, pendurar a vergalheira nas costas ou levar com a gola na cara eram algumas das brincadeiras mais frequentes.
Depois do porco limpo e pendurado na escada eram retiradas as tripas. Cada aldeia tem a sua forma de realizar estas tarefas. Em Gondesende começa-se por retirar a couracha e a barbada ainda no banco mas as tripas só são retiradas depois de o porco estar pendurado numa escada.
O Sobeio que prendia o jugo ao carro das vacas era utilizado para pendurar o porco numa das traves da adega. Depois disto todos os que participaram na matança reuniam-se à mesa para comer os garrochos  (pedaços da barbada junto ao pescoço) e o figado assados nas brasas. As mulheres da casa eram encarregadas da lavagem das tripas e da sua preparação para poderem ser utilizadas nos enchidos.
O dia terminava com um jantar em que normalmente não se servia carne de porco e a que se seguia um serão de boa conversa e uma suecada.
Actualmente tudo isto são apenas recordações que por vezes alguns, cada vez menos, ainda teimam em avivar.