sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A minha tia Belmira de Portela

Diz-se, por vezes, que há quem nasça para ser servido, mas é bem verdade que existe quem, por nascimento, receba tal generosidade e espírito de sacrifício que encontre plena realização vivendo a servir os outros. Este foi  o caso da minha tia Belmira, que sendo a segunda de oito irmãos e uma das duas mulheres, passou toda a sua vida ao serviço da família. Quis o destino que nascesse dotada para o trabalho e capaz de tudo fazer com desenvoltura e perfeição. Fosse no tempo do feno ou nas cegadas acompanhava os irmãos no campo, tratava da lide da casa onde havia sempre porcos e galinhas e ainda encontrava tempo para tecer algumas mantas de farrapos e tricotar "meotes" de lã com que os irmãos e sobrinhos protegiam os pés do rigor das geadas. Do namorico da juventude nunca resultou casamento por desencontros de famílias, embora ambos tenham alimentado secretamente o seu amor ao longo da vida como se de uma pequena traquinice se tratasse. Numa altura em que o peixe não abundava e a sardinha salgada era um petisco dividido entre dois, tocava-lhe sempre a cabeça de que aprendeu a gostar. Para os sobrinhos guardava sempre alguns mimos, normalmente algumas súplicas, mantidas frescas num saco de pano que pendurava no quarto escuro. Como em casa havia sempre gado aprendeu também a tratar da lã, lavando-a, cardando-a e fiando ao serão os novelos que depois transformava em peças de roupa para a família. Muito dotada para a cozinha assava cordeiro como ninguém, ainda que não fosse apreciadora de tal petisco. Ainda nova perdeu a audição passando a utilizar um aparelho que pendurava ao pescoço em saquinhos de pano que ela mesmo costurava. Quando a conversa não lhe agradava ou os sobrinhos traziam à baila as suspeitas do seu namoro secreto desligava o aparelho e desculpava-se com a sua surdez. Apesar de não ter sido brindada com a maternidade, cedo perdeu os dentes e passou a utilizar dentadura, que tirava da boca com a língua quando queria assustar os miúdos que andavam sempre à volta dela. Tinha tal jeito para as crianças que para além dos sobrinhos criava cordeiros e leitões, sempre que uma ovelha trazia gémeos ou segundiços ou um leitão ficava sem teta. Quando os vários casamentos foram levando os irmãos e dividindo a família manteve a casa dos pais junto com os dois irmãos que ficaram solteiros. Embora eles dividissem o trabalho agrícola e de pastoreio, de acordo com a sua preferência, a ela tocava-lhe sempre ajudá-los sem, com isso, descurar as outras tarefas que uma casa da aldeia exige. Sempre bem disposta e pronta a ajudar são poucas as birras que se lhe conhecem, embora houvesse quem afiançasse que, quando picada, tinha muito mau génio. Já mulher madura assistiu às peripécias e tropelias do irmão que haviam de o acamar para o resto da vida. Sem reclamar, assumiu tratar-se de um filho seu e tratou-o como verdadeira mãe enquanto ele esteve entre nós deitado a contemplar o tecto do seu quarto. Quando a velhice se aproximou, empurrada pela vida difícil que levou, uma queda nas lages da cozinha, partiu-lhe o fémur, fragilizado por uma alimentação onde o leite não entrava. Embora nunca faltasse com o arroz doce nos almoços e jantares das festas e o leite das ovelhas e vacas fosse abundante lá em casa, nunca foi coisa que lhe agradasse beber. O tratamento da fratura correu bem e tudo parecia encaminhado para que tivesse, finalmente, uma velhice sossegada. Contudo, quem teve uma vida tão activa a tratar dos outros não se acomodou a que fossem agora os outros a servi-la e como que desistiu de lutar pela sua recuperação. Já acamada e com as faculdades a degradarem-se ainda acordava de noite preocupada com os outros e a perguntar pelas tarefas da casa.
Esta é a história da minha tia Belmira de que muito gostei e de quem embora não tenha herdado  a capacidade de trabalho e espírito de sacrifício, alguns dizem me deixou o nariz e alguns traços da minha fisionomia. Quanto a isso não me importo e até são motivo de alguma vaidade...

1 comentário:

  1. Adorei ler estas palavras e recordar a nossa "Tia Mira", relembrando a sua simpatia, o carinho com que nos tratava, as brincadeiras para as quais estava sempre pronta, e sem dúvida a vida dura que levou... uma verdadeira lutadora!!!
    É mesmo certo que o teu nariz, foi herança dela, tal como o teu sorriso e o teu ar de brincalhona... tal como ela!!!

    Parabens e obrigada. Beijinhos

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