Corria o ano 61 do século passado e era final de Agosto. Os dias eram longos e quentes e as malhas deste ano já estavam feitas. A luz eléctrica ainda não tinha chegado à aldeia e, nessa altura, Gondesende alumiava-se com as candeias e candeeiros a petróleo ou a lampião quando era preciso ir à adega ou acomodar a cria. O Sr. padre António que vivia na abadia, esse, já se alumiava a petromax. A rapaziada nova recorria às “focas” ou “facheiros” de palha sempre que os bailes nas aldeias vizinhas os obrigavam a caminhadas pela noite dentro. Ainda que habituados a andar de noite as poldras e esterqueiras eram obstáculos que exigiam alguns cuidados.
Nesse tempo também ainda não tinha chegado a estrada a Gondesende. As idas à cidade faziam-se a pé, pelo caminho de Oleiros, ou na carreira do Sr. Dias que passava no abrigo. Para isso usava-se o caminho de “Calhelha” e passava-se ao pé do moinho de Portela para chegar à estrada. Os carros particulares eram ainda poucos e pouco utilizados.
A filha mais nova do tio Augusto estava de esperanças do primeiro filho e a coisa estava para breve. Hoje já cá esteve o Dr. Jota que pediu para o chamarem se a coisa se abreviasse. O que vale é que o telefone está na casa dó cabo e a tia Imperatriz, mãe da rapariga, se for preciso rápido telefona ao médico. Já era noite quando se rebentaram as águas e o médico foi chamado. Como a coisa podia dar para tarde o Dr. Jota veio no seu carro ligeiro e trouxe o sogro para lhe fazer companhia.
A Cremilde, era esse o nome da cachopa, apesar de já ter alguns aninhos, vai ter o primeiro filho e está um pouco assustada. O Dr., depois de se inteirar da situação, disse: “o melhor é ir para o hospital, pois os partos em casa podem dar para o torto e, como se trata do primeiro filho, provavelmente teremos que o tirar a ferros”. Mas já é de noite escuro e o caminho de Oleiros está um pouco rebentado. As rodeiras deixadas pelos carros de vacas com as carradas de trigo que vieram das “chainras” e "dós fornos" não facilitam a passagem dum carro ligeiro. Mas o pior são as pedras, essas é que podem furar um pneu ou abrir a suspensão.
Gondesende sempre foi uma terra de solidariedade em que o povo tem o hábito de ajudar. A prima, um pouco mais velha, conhecia bem estes apertos pois já cá tinha posto três filhos, e logo se ofereceu para ajudar. E assim foi, na frente do carro do Sr. Doutor lá foi tirando as pedras e ajeitando o caminho para que este pudesse passar até ao alto de Oleiros. Para ajudar levou a Augusta, filha do Zé Rabal de Portela, que na altura vivia com a sua madrinha que também era a avó do rebento que tanto trabalho estava a dar.
A criança nasceu já de madrugada no hospital e dos ferros que o ajudaram a vir ao mundo guarda ainda as marcas nas fontes da cabeça. Já homem feito ainda se lembrava com frequência desta odisseia que a mãe lhe tinha contado logo que ganhou entendimento. Quanto à prima que ajudou a que o carro do Dr. Jota chegasse ligeiro ao hospital era actualmente a pessoa mais idosa da nossa aldeia e deixou-nos recentemente. E eu, que fui o responsável por todos estes trabalhos, decerto sentirei a sua falta no alto da escada da sua casa dó tanque quando voltar a Gondesende.
Com esta singela homenagem apenas procuro registar mais uma daquelas pequenas histórias da nossa aldeia que fazem as nossas recordações.
Com esta singela homenagem apenas procuro registar mais uma daquelas pequenas histórias da nossa aldeia que fazem as nossas recordações.
Que a tia Cândida descanse em paz.
Mário
Mário